Na semana passada, Paulo Nascimento, diretor do Museu do Ouro (Sabará, MG) e o professor Mário Chagas, diretor do Museu da República (Rio de Janeiro), se encontraram num bate-papo virtual para conversar sobre o presente e o futuro dos museus diante da pandemia do coronavírus. A “live”, transmitida em conjunto pelos perfis do Ibram e do Museu da República no Instagram, inaugura a série Ibram Compartilhando, que prevê, entre outras ações, transmissões semanais para se debater os desafio dos museus no cenário atual.
Os museólogos conversaram sobre o sentido de casa, território e museus na perspectiva trazida pelo confinamento, e aprofundaram reflexões sobre as novas formas de produção de memória nesse novo contexto em que vivemos. Com Paulo Nascimento organizando os comentários e as “provocações”, coube ao professor Mário Chagas um maior aprofundamento nas reflexões. A seguir, destacamos alguns momentos desse bate-papo, que está disponível na íntegra no perfil do Ibram no YouTube:
A casa e sua dimensão museal
Mário Chagas: A casa é um bom ponto de partida para se pensar sobre museus. Desde a antiguidade a ideia de museu está associada à ideia de casa. O lugar em que se habita. De fato, casa e território atravessam a ideia de museu. Tom Zé diz: “cada homem é sozinho a casa da humanidade”. A casa ganha agora uma dimensão especial. Ganhamos a oportunidade de olhar para nossas casas com uma perspectiva museal. Seus elementos de memória, seus panos de prato, seus panos de chão, seus quadros na parede, seus talheres, e mais tantas coisas poéticas extraordinárias. Casas impregnadas de memórias. Talvez seja uma oportunidade de olhar nosso ‘museu pessoal’. E todos nós teremos ali alguma experiência de abrigo. Mesmo aqueles que não têm casa, tão vulnerabilizados, hão de procurar abrigos e construir sua memória pessoal dentro das possibilidades dadas. A casa tem essa dimensão: revela-se cada vez mais a importância da casa, o direito à moradia. Em tempos de Covid isso se revela de modo dramático.
Os museus fechados
Mário Chagas: “Viva os museus fechados, com todas as suas ambiguidades!” Afinal, os museus estão fechados porque não são serviços essenciais ou estão fechados porque são essenciais? Os museus são essenciais ou não? Ferreira Gullar diz que a arte existe porque a vida não basta. Este é um ponto importante para os museus. A realidade também não basta, e os museus funcionam dentro deste quadro. Os museus nos trazem outras possibilidades, e antes de tudo surgem do desejo de comunicação. Assentam-se na poiesis. Mesmo os museus científicos estão assentados em poiesis – o desejo de comunicação. Afinal, estamos num tempo de valorização cada vez maior da ciência. É necessário reconhecer a dimensão poética, a poiesis da ciência. A poiesis como um fazer cirativo, ancorado num desejo de comunicação. Os museus têm dimensão poética e terapêutica – alegria, felicidade, estranhamentos. Tudo isso está na categoria dos afetos. Os museus produzem afetos e, porque produzem afetos, são essenciais em nossa dinâmica de vida.
O ineditismo trazido pela pandemia
Paulo Nascimento: O problema é que a gente nunca viveu uma pandemia. Tudo ainda é um processo. Quando a gente relaciona o museu com a vida, e a vida é dinâmica, a situação de agora é de aprendizado. Os museus estão aprendendo com a pandemia. Um novo momento de estar no mundo, uma nova forma de estar no mundo.
Mário Chagas: Está claro que não temos nem queremos respostas fechadas para isso. Vai ficando claro: os museus não serão mais os mesmos pós-pandemia. Importante compreender o sentido de pandemia: o povo todo, o povo inteiro. Mas quando se pensa em pandemia, há distinções: a pandemia não atinge o povo inteiro da mesma forma. Pensemos no papel indispensável dos terceirizados: no momento em que os museus fecharam, quem está lá garantindo a manutenção dos museus? A vigilância, a limpeza, a jardinagem. Esse pessoal, quase todos negros e mestiços, é que está se expondo mais, para dar garantias ao museu.
Os novos desafios dos museus
Mario Chagas: Qual o sentido dos museus agora? Que contribuições eles podem ter? Estou convencido de que os museus terão que reinventar novas formas de contato com o público. Tudo isso precisará ser reinventado. Nós temos experiências que precisam estar no nosso rol de aprendizagem. Conversei com o grupo do Icom Brasil no sentido de fazer um inventário de algumas dessas experiências. Vale citar como exemplos: o Museu Casa Bumba Meu Boi, reinventando uma forma de ser museu; os museus indígenas do Ceará, com o #FicaNaAldeia, um trabalho extraordinário; o Museu Natural do Mangue; o Museu da Boneca de Pano, recolhendo e distribuindo material. O MUF, o Museu de Sepitiba, com rádio, lives. Tantas experiências. Uma reinvenção dos museus sociais, um aprendizado importante. O Museu da República, dentro de suas possibilidades, vem focando em atividades virtuais. Acho pouco, mas temos pensado formas, como por exemplo o importante projeto de aulas de bordado, sugerido por uma servidora, Christine Azzi. O projeto foca nas palavras que representam a memória desse momento, com a perspectiva de uma exposição sobre essas palavras bordadas. Não é apenas o registro do momento, é a produção de esperança. Isso nos ajuda a pensar que há uma outra forma de casa.
Cenários possíveis
Mário Chagas: O que o Ibram pode fazer? Apoiar tudo isso, ajudar a inventar. O momento é de reinvenção. Visualizo dois cenários possíveis para o pós-Covid: não está dado que no pós-Covid as coisas estarão melhores. É possível que surjam museus anti-sociais, xenófobos, não está dado o caminho. Eu diria que esse é o momento em que nós podemos trabalhar para esses caminhos diferenciados. Imagino que sei onde quero estar: numa sociedade com mais laços sociais, com mais “fratrimônio” (uma ideia sobre a qual podemos conversar noutra oportunidade).
A museologia e o apelo tecnológico
Paulo Nascimento: Uma provocação: para repensar as nossas ações, a gente vê muito os museus fazendo lives, exposições, e num grupo de colegas estávamos comentando que a gente está indo para o ambiente virtual, mas a museologia tem uma forma de ação. Não podemos responder a essa ansiedade de responder a esses estímulos e fazer a museologia de qualquer jeito. Esse movimento tem que ser feito com os métodos museológicos. O ambiente é dferente, mas o cerne da questão está lá. A museologia tem respostas. O capital que a gente trabalha não é a tecnologia, é a memória das pessoas.
A contribuição da museologia
Mário Chagas: Penso sobre o que você levantou sobre as questões de museologia, um saber-fazer no campo da museologia. De qualquer forma os tempos atuais são tempos em que esse saber-fazer também está desafiado. Não existe um único caminho. Talvez um dos pontos importantes seja este: que contribuições, a partir do campo museal, a partir da museologia, podemos oferecer? Se conseguirmos encontrar caminhos para isso, será relevante. Estamos falando da proposição de vivências. Alguém nos comentários levantou a questão dos nossos mais velhos. Lidar com os museus é lidar com a percepção de que os mais velhos não são descartáveis, que eles constituem a possibilidade de conexões entre tempos e espaços diferentes. Esse não é o único grupo de risco. Os mais pobres, os povos indígenas, os que vivem afastados do ponto de vista urbano, com acesso mais difícil a serviços de saúde, os moradores de rua. Essas pessoas todas são importantes para nossa humanidade.
Pontos no ar: elementos para continuidade de conversas.
Mário Chagas conclui sua participação destacando quatro pontos que estão no horizonte dos museus, e que nos estimulam a pensar novos caminhos em tempos de Covid: 1) O desafio de pensar os museus como territórios do “e” (conjunção aditiva) em vez de “é”. Vale aqui a lembrança do Raul Seixas. Isso e aquilo e também outra coisa. A sugestão é não fechar os museus numa proposta única. 2) Os museus são bons para pensar, sentir, sensibilizar e agir. 3) Pensar os museus como espaço de relação e não acumulação. 4) Reinventar os museus. Decolonizar o pensamento museológico.
Onde ver: o vídeo com a live pode ser visto na íntegra no canal do Ibram no YouTube, clicando aqui.